JORNALISTA HELVÉCIO CARDOSO

 

Todo mundo falando de Karl Marx!  Só para contrariar, vou falar de Firedrich Engels. Ele foi o primeiro marxista da história, antes mesmo de Marx. Aliás, foi depois de ler “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”  que Marx se tornou marxista. Até então, ele era apenas um hegeliano de esquerda engajado numa revolução burguesa na Alemanha. Revolução que deu com os burros n´água, saliente-se.

A idealismo filosófico de Hegel, morto aos 60 anos em l831 (Marx contava, na altura, com 22 anos ), empolgara toda uma geração de jovens estudantes alemães,  apesar dos  aspectos conservadores desta filosofia. Uma boa parte da juventude, porém, percebeu o alto teor revolucionário do método hegeliano, a Dialética. Marx e Engels estavam nela.

Para Hegel, a verdade do pensar está no movimento, no processo. O pensamento tradicional, herdeiro da antiga metafísica, concebia o mundo do ser como um  mundo de dualidades  quietas e em excludente oposição. Hegel, no entanto, via essas dualidades como  em unidades dinâmicas, trocando de posição o tempo todo. Não há repouso. Tudo está  heracliteanamente em movimento, em constante devir.  O movimento é gerado pelas contradições, que por sua vez são geradas pelo movimento. Nada é para sempre, tudo se transforma, tudo que nasce deve perecer. A negatividade desestabiliza o mundo das certezas positivas. Há um vasto repertório de mediações, relações, interatividades e superações que levam o ser do singular para o universal, e vice-versa, numa progressão espiralada ao infinito.

O problema  com Hegel  é que o movimento dialético desemboca no espírito absoluto, ou, o que dá quase no mesmo, no saber absoluto. O devir chega a um ponto em que, estropiado por sua frenética dialeticidade, empaca e arria com a carga.  Hegel via no triunfo da sociedade civil-burguesa sobre as instituições do Ancien Regime a conciliação, na esfera do Estado racional, de todas as contradições, o fim de toda negatividade. Seria o fim da história, para usar aqui uma termo cunhado pelo ex- hegeliano Ludwig Feuerbach.

Acontece, como bem observou Marcuse, que Hegel não tivera tempo de perceber a emergência de uma nova negatividade: o proletariado. A emergente classe operária se afirmava como classe para si, se determinando pela oposição ao seu outro, a burguesia. Os dois polos do movimento dialético estavam repostos, não no pensamento, mas na arena da vida onde a luta de classes era o bicho pegando. O conflito acirrado das duas classes, nascido das contradições imanentes do modo de produção capitalista, recolocava em jogo a bola do processo histórico. Ainda não seria, desta vez, o fim da história.

Em um livro chamado “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Engels nos conta, em tom confessional, que a “A essência do Cristianismo” fora um livro libertador. Feuerbach havia se separado do hegelianismo pela adoção de um ponto de vista materialista. Se para Hegel, o idealista por excelência,  a dialética nada mais era do que uma lei do pensamento (pensamos, em geral, dialeticamente, mesmo quando não nos damos conta disso) para Marx e Engels, depois de influenciados pelo pensamento libertador de Feuerbach, a dialética era a própria lei da vida. Engels chegará ao ponto de afirmar que a dialética está na natureza, como força imanente. Nesta inversão ontológica, ela sai do Eu pensante para o objeto fora de nós, a coisa pensada, o mundo lá fora. O marxismo ortodoxo aceita isto como dogma. Mas houve entre marxistas pragmáticos quem discordasse dessa extrapolação. A meu ver, é uma questão marginal, de interesse meramente escolástico.

Marx e Engels abandonariam Feuerbach.  Apesar de seus méritos, Feuerbach era mais um daqueles filófosos que se conformam em meramente interpretar o mundo, quando o que importa, diria Marx, é transformá-lo. Tendo identificado no proletariado a força transformadora e superadora da sociedade burguesa, Marx e Engels se juntam a ele, tornando-se,  de homens de letras,  em políticos full time, agitadores profissionais. Não mais filosófos, mas críticos sociais e polemistas agressivos. Homens que uniram o pensamento à ação.

 

Rumo ao materialismo dialético

 

Até chegar ao comunismo, Marx percorreu um longo caminho. O livro de Engels sobre a vida dos operários ingleses foi uma estação de parada para mudança de rumo. Marx pirou quando leu este livro. Ele tinha as respostas que Marx vinha buscando. As chaves hermeneuticas para o acesso à essencia da exploração capitalista estavam lá. Foi abrir a porta e entrar  no santo do santo do sistema: a formação da mais-valia – ou mais-valor, que é a tradução correta -, o truque pelo qual o burguês se apropria da riqueza criada pelo operário, expandindo e acumulando o capital. É o que explica a pobreza extrema do trabalhador em face da riqueza ostensiva do burguês capitalista.

“A situação da Classe trabalhadora na Inglaterra”  é uma obra de imersão sociológica. Engels passou dois anos frequentando casas de operários, convivendo com eles. Foi testemunha ocular da miséria material e moral dos trabalhadores. Nem Charles Dickens foi tão profundo nisso. Por outro lado, sendo um buguês,  um rico herdeiro de um magnata alemão com negócios na Inglaterra,  ele frequentava os salões da burguesia e, como ningém, sabia como ela pensava.

Além do trabalho de campo, Engels buscou numa farta documentação o fundamento de suas generalizações.  Como bom hegeliano que sai em busca do universal como quem procura pelo Graal, ele investiga a fundo a origem da classe operária inglesa. Percorre todas as etapas necessárias do desenvolvimento capitalista nas ilhas britânicas e aponta suas insolúveis contradições. Demonstra como a introdução do vapor e da maquinaria engendraram o galpão da fábrica e, nesta, aflororou a classe operária. Foi ele, aliás, quem cunhou a expressão “revolução industrial”, muito banalizada nos dias de hoje,

Por fim, tomando partido do proletariado, Engels supõe que a única forma de superação do conflito a revolução. Ele acompanha de perto  a luta operária, seus movimentos, seus líderes. Critica os socialistas de gabinete por suas omissões, bem como o cartismo, por sua estreiteza intelectual.  Mas fecha com os cartistas, que eram homes de ação e que odiavam fervorosamente a burguesia. No seu entusiasmo juvenil, Engels prevê a revolução como inevitável e eminente.

A revolução acabou não vindo na Inglaterra. Antes de morrer, Engels iria reconhecer as falhas de suas previsões, atribuindo-as ao seu entusiasmo juvenil. Mas preferiu não retocar o livro. A revolução antevista por Engels acabaria acontecendo mesmo, décadas depois, na Rússia improvável.

Na verdade, um primeiro ensáio explodiu em Paris, no ano de l871. Foi uma revolta proletária comandada por Proudonistas e Blanquistas. Os marxistas não passavam de 4%. Mesmo assim, a heróica luta do proletáriado francês, afogada em seu próprio sangue, foi vivamente acompanhada por Marx e Engels, a partir da Inglaterra. Analisando os acontecimentos, eles identificaram os erros e as ilusões que conduziram a Comuna à derrota. Erros que Lênin e Trotski não haveriam de cometer.

A questão da revolução proletária está posta por Engels neste seu livro da juventude. Ele errou no varejo, mas acertou no atacado. Muitas outras revoluções em nome do socalismo seriam tentadas nesses 150 anos passados da Comuna de Paris. Algumas triunfaram, outras foram frustradas, algumas se desvirtuaram. O pavor da revolução comunista, no entanto, levou a burguesia ora a intensificar a repressão, ora a fazer concessões no plano político e econômico ao proletariado. Mais do que uma possibilidade histórica ( uma necessidade histórica, dirá o marxista ortodoxo), o socialismo paira em nossa contemporânea sociedade como um ideal ético, a régua paradigmática pela qual se mede a moralidade universal. Uma moralidade que vai aos poucos se imiscuindo pelos poros do cristianismo, sem tocá-los, e, nisso, impondo a exigência de um novo conceito de justiça.

 

P.S – A Comuna de Paris começou no alto de Montmartre, onde hoje ergue-se imponente a catedral do Sacré Couer. Os útimos combates aconteceram em Beleville, onde vivia o grosso da classe operária parisiense. Beleville nunca se rendeu. A guerra só terminou quando o último communard tombou morto. Ao lado de Beleville situa-se o cemitério do Pére Lachaise, onde os communards foram enterrados em vala comum sem direito a lápide. Hoje tem, no local, uma placa alusiva. Em Beleville, na esquina do Boulevard Menilmontand com a Rua Beleville, situa-se  a portensosa sede do PCF e a redação do L`humanité, o jornal  que Jean Jaurez fundou. O projeto arquitetônico do edifício leva a assinatura de Oscar Niemeyer.

 

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