Escritor vai à Bienal do Rio e lança ‘Escravidão – Volume 1’ primeira parte de uma trilogia dedicada ao tráfico negreiro.

 

O Brasil é um País que importância aos seus símbolos, e de menos à sua gente. A definição é do escritor Laurentino Gomes, autor de uma trilogia premiada sobre a história do Brasil- os livros 1808, 1822 e 1889- e que acaba de lançar o primeiro livro de uma nova série, desta vez sobre a escravidão no país.

Segundo Laurentino Gomes, datas como, o feriado da Independência, e símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil, têm sido utilizados há anos por governos para reescrever a história conforme seus interesses.

Segundo ele, no governo Jair Bolsonaro, patriotismo e datas históricas são usados para negar o legado da escravidão e para manter sistemas de privilégios. Mas o renomado historiador ressalta que a estratégia de utilizar símbolos patrióticos para vender ideologia e políticas públicas não é de hoje.

“Como a história é ferramenta de construção da identidade (…) é natural que a história, e também os seus símbolos, sejam manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos, pelos diferentes grupos ideológicos”, afirma.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele exemplifica como a estratégia foi usada nos primeiros anos da República, no Regime Militar, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por Bolsonaro.

“Se você observar, a frase preferida do presidente Lula, no governo do PT, era ‘nunca antes na história deste país’. É uma maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e desafios do presente”, diz.

“E o governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história da escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, Existe um projeto político muito bem-definido, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam discutidas e implantadas.”

Na entrevista, Laurentino Gomes também explicou os elos entre datas e símbolos que um país escolhe exaltar – como é o caso do feriado de 7 de Setembro -, e os eventos do passado que tentamos esconder.

“Preferimos valorizar imagens enganosas com as quais aprendemos a nos identificar, como o gigante adormecido em berço esplêndido, a bandeira, o hino, e deixamos de lado momentos incômodos do passado. A violência, a corrupção, os milhões de africanos que foram escravizados no Brasil”, disse o escritor.

Gomes destaca, sobretudo, o que chama de “negligência histórica” ao legado de escravidão.

“Nossa alma africana nunca foi observada, estudada, valorizada como deveria”, disse o escritor. “E é por descuidar dessa alma que digo que viramos, sem querer fazer um jogo rasteiro de palavras, um país desalmado. Temos uma visão mercantilista dos símbolos nacionais, valorizamos o aspecto físico dos recursos naturais, mas não é isso o que reflete e valoriza a sociedade brasileira.”

Entre as consequências que enfrenta um país ao ignorar sua alma, lembrou o escritor, está o caso do adolescente que levou chibatadas dentro de um supermercado na periferia de São Paulo, conforme noticiado esta semana.

“Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão que a gente julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. É uma prática muito comum no regime escravista, um século e meio atrás, que aparece em 2019 na periferia da cidade mais rica do país.”

Leia os principais trechos da entrevista do autor à BBC News Brasil:

 

BBC News Brasil – Como o processo de Independência do Brasil, que comemora-se neste sábado, se relaciona com a escravidão, que só foi terminar quase 70 anos depois?

Laurentino Gomes – Ao pesquisar a escravidão, concluí que esse é o principal assunto da História do Brasil, não só pelos números e pela duração do tráfico dos escravos ou pela persistência do legado da escravidão hoje, mas, porque quando você observa os grandes fatos históricos brasileiros, a escravidão é o fio condutor. É o que alinhava uma coisa na outra, e um caso exemplar é a Independência do Brasil.

Em 1821, os escravos e os seus descendentes, a população negra brasileira, já era amplamente majoritária. Os brancos eram minoria. E havia, segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, um sentimento de medo, que funcionou como amálgama do processo de Independência do Brasil. Medos de duas naturezas. Primeiro, de que o Brasil mergulhasse numa guerra civil republicana como estava acontecendo na américa espanhola.

As lideranças políticas locais mergulharam numa guerra para defender seus territórios, seus interesses e a América espanhola se separou em vários países independentes. Esse era o primeiro medo, ou seja, a conquista da integridade territorial tinha sido muito árdua durante o período colonial brasileiro.

Mas aí havia um segundo medo, que se somava ao primeiro: na hipótese de uma guerra civil republicana no Brasil, os chefes políticos regionais, que eram rivais entre si, teriam que armar os seus escravos, porque eles não tinham força armada que não fosse a da própria escravidão. E esses escravos armados e imbuídos das ideias libertárias que sopravam da Revolução Francesa, da Independência dos Estados Unidos, e assim por diante, poderiam reivindicar a própria liberdade. Isso poderia resultar num banho de sangue, como aconteceu no processo de independência do Haiti, entre 1789 e 1794. Esse era o medo, representado por uma expressão muito corrente na época, que era o “Haitiismo”.

Havia, então, a soma desses dois medos: o medo de uma guerra civil republicana e o de uma guerra étnica. Como ambos ameaçavam os interesses da elite escravista brasileira, essa elite optou por uma revolução conservadora. Eles se agregaram ao redor do herdeiro da Coroa de Portugal, o príncipe D. Pedro I, imperador brasileiro, romperam os vínculos com a metrópole, mas não mexeram em nada. Não acabaram com o tráfico de escravos, não acabaram com a escravidão, não educaram as pessoas, não fizeram a reforma agrária, mantiveram a estrutura social vigente. E isso explica o processo de independência totalmente diferente do Brasil em relação aos seus vizinhos da América.

Então, isso explica um pacto entre essa aristocracia brasileira e o trono brasileiro, que manteve a monarquia por tanto tempo no Brasil, por 67 anos após a Independência. Um apoiava o outro, e um não mexia nos interesses do outro.

BBC News Brasil – No seu livro, o senhor aponta que o sistema escravista se fortaleceu ainda mais depois da Independência. A sociedade brasileira se estruturava nele?

Laurentino –Sim, se fortaleceu porque era um sistema que, do ponto de vista da elite brasileira, vinha funcionando muito bem ao longo do Brasil colonial. Os números depois da independência, de tráfico de escravos, foram uma coisa incrível. E é interessante como a escravidão volta a ser depois o fio condutor para a proclamação da República. É ela que dá sentido aos acontecimentos. Porque, no fim do século 19, o Brasil passou a sofrer uma pressão colossal abolicionista. Viramos um pária internacional, muito semelhante ao que aconteceu com a África do Sul durante o regime de segregação racial, no século 20. E é aí que o trono se torna também abolicionista, acaba fazendo a Lei Áurea, e o pacto se quebra.

E não é por acaso que, no ano seguinte, 1889, o edifício todo implode, acaba a monarquia e vem a República. Isso mostra que realmente não dá para entender os grandes acontecimentos da história do Brasil, incluindo a Independência e a República, sem entender que o mecanismo que conduz os acontecimentos é justamente a escravidão. E, antes disso, há mostra de como o regime estava estruturado na escravidão: não só a Independência, o rompimento formal no dia 7 de setembro de 1822, mas os seus desdobramentos, o próprio destino do Primeiro Reinado (1822-1831), do brevíssimo Primeiro Reinado, de apenas nove anos, é permeado pela escravidão. Lembra? D. Pedro se tornou imperador do Brasil em 1822, logo após o grito do Ipiranga, e as diversas províncias, as diversas correntes políticas existentes no Brasil – republicanos, constitucionalistas, maçons, liberais, e assim por diante -, aceitaram em troca da promessa de que Dom Pedro convocaria uma Constituinte. Que faria uma lei a qual o próprio imperador estaria sujeito, né, teria que respeitar. Esse era o plano.

Mas, aí, essa constituinte convocada em 1822 foi extinta, dissolvida em novembro de 1823. E qual foi a razão? A escravidão. Porque começaram a ser muito fortes os debates no Parlamento, especialmente uma proposta do José Bonifácio de Andrade e Silva, para acabar com o tráfico negreiro e acabar com a escravidão. O José Bonifácio, às vésperas da disssolução da Constituinte, ia apresentar um projeto para acabar com o tráfico de escravos. E aí, pronto: todo o processo constituinte desandou. A Constituinte – que foi um pacto estabelecido entre D. Pedro e os diversos grupos rivais, adversários na época – se dissolveu. O motivo foi principalmente a ameaça que os fazendeiros, os cafeicultores, os senhores de engenho, os mineradores de ouro e diamante sentiram, diante da possibilidade de que essa Constituinte acabasse com o tráfico de escravos. E aí o primeiro reinado mergulha numa crise e não sai mais.

Ninguém mexia com a escravidão.

Quis mexer, acabou com o Primeiro Reinado. A dissolução da Constituinte é um primeiro golpe de morte na popularidade de D. Pedro I. Ele tinha saído como herói da Independência e rapidamente vira vilão. Claro, houve outras causas, os escândalos da vida pessoal, o envolvimento dele com a Marquesa de Santos, mas a principal razão foi essa. O fato de ele ter dissolvido a Constituinte, pressionado pelos interesses escravistas, e aí o primeiro reinado entra numa crise que vai terminar no dia 7 de abril de 1831, quando o imperador abdica e vai embora, né.

BBC News Brasil – O seu livro 1822, da trilogia anterior, trata justamente do processo de independência do Brasil. O que mudou para os escravos, viver em um país livre da colôina portuguesa?

Laurentino – No livro 1822 eu escrevi um capítulo chamado “Os Órfãos”, mostrando que há uma sensação de orfandade no processo da Independência do Brasil, por parte das camadas mais pobres da população, que incluía os ribeirinhos, os sertanejos do Nordeste, mas principalmente os escravos. É muito interessante que, em 1821, quando chegou ao Brasil a notícia da Revolução Liberal do Porto, muito influenciada pela Revolução Francesa, e a principal causa da volta de D. João para Lisboa, um escravo em Minas Gerais chamado Argoin, um dos poucos escravos que sabia escrever, escreveu uma carta aos seus vizinhos, negros cativos, que dizia o seguinte: observe o cativeiro de vocês, porque os nossos irmãos em Portugal fizeram uma revolução que nos iguala aos brancos.

Então é hora de lutar por essa liberdade. Ou seja, o Argoin, e também os escravos, achavam que essas ideias libertárias que vinham da Europa eram para eles também, e não eram. Era só para os brancos. Que é exatamente o que aconteceu no Haiti, uma colônia francesa, houve uma revolução escrava e um banho de sangue exatamente quando os cativos perceberam que as ideias que sopravam de Paris não eram para eles, eram só para os brancos. E aí houve uma revolução e um massacre dos brancos no Haiti.

E, no Brasil, também. Claro que aqui era uma massa enorme de analfabetos, não havia informação, a imprensa era muito recente, a comunicação no interior do Brasil era muito precária. Mas essas ideias chegavam. Isso explica, por exemplo, a quantidade de rebeliões de natureza popular envolvendo segmentos muito pobres da população nos anos seguintes à abdicação de D. Pedro, em 1831. Você tem a Cabanagem no Pará, a Revolta dos Cabanos, em Pernambuco, a Balaiada no Maranhão, depois a Sabinada na Bahia, e assim por diante. E é justamente isso. Envolvendo gente muito simples, gente muito pobre que julgou que tinha ficado à margem do processo de Independência. Por isso eu digo que há essa orfandade na Independência do Brasil. E essas rebeliões foram sufocadas à ferro e fogo para que o sistema se mantivesse.

BBC News Brasil – Como os governos fazem uso político de uma data como a da Independência? Datas simbólicas como essa são usadas para encobrir problemas, por exemplo?

Laurentino –Sim. Existe uma construção oficial da história do Brasil tentando fazer uma narrativa, que eu diria que é uma narrativa basicamente masculina, branca e europeia. São os grandes personagens, os grandes acontecimentos, a vinda da corte portuguesa. Podemos enumerar: a chegada de Pedro Álvares Cabral, os governadores gerais, a chegada da corte, depois a Independência, a República, D. Pedro I, D. Pedro II, Princesa Isabel. Há uma celebração em torno desses personagens, primeiro com viés monárquico e depois com uma narrativa republicana.

Mas, por outro lado, existe uma história que fica escondida e diz muito sobre quem somos. Por exemplo, a história da escravidão, eu diria que comparada com a história de ascendência europeia, digamos assim, o que poderíamos chamar de história branca, ela é muito menos valorizada do que esses personagens e acontecimentos emblemáticos. O Brasil nunca teve até hoje um único grande museu nacional da escravidão, ao contrário do que há em Liverpool, na Inglaterra, em Angola, em Washington, nos Estados Unidos. É uma maneira, inclusive, de esconder uma parte da história que incomoda. Porque os museus não são apenas lugares de entretenimento, de levar criança e passar uma tarde. Eles são locais de reflexão. E, quando você reflete sobre determinados assuntos, isso tem consequência política. As pessoas vão tomar decisões, vão chegar a determinadas conclusões, e isso resulta em decisões que são tomadas na urna, na adoção de políticas públicas e assim por diante.

Também pode ser uma estratégia esconder uma parte da história, ou maquiá-la com mitos. Por exemplo, há toda uma historiografia construída no Brasil de que tivemos uma escravidão mais benévola, mais patriarcal, e que isso resultou numa grande democracia racial. Esses são mitos que a gente construiu a respeito de nós mesmos, para encobrir o legado da escravidão, e encobrir não só as estatísticas absurdas com as quais convivemos hoje, um abismo de oportunidades entre brancos e afrodescendentes, mas também o preconceito racial, que é muito visível no Brasil. E a gente finge que é uma grande democracia racial.

BBC News Brasil – Por que há muita dificuldade em acertar as contas com esse passado?

Laurentino –Porque a escravidão não é só um comércio de gente. Ela é uma estruturação da sociedade, de poder, distribuição de recursos, de terras, riquezas, de benefícios e de privilégios. Um grupo tem acesso a riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos recursos públicos, e outro não. E isso acontece hoje também. Então quando você vê, por exemplo, esse mar de desigualdade no Brasil, nós estamos falando da mesma coisa. Um grupo muito pequeno, privilegiado, que tem acesso aos recursos públicos, tem acesso às melhores áreas de moradia, por exemplo, no Rio de Janeiro. Existe uma segregação real hoje no Rio de Janeiro, como existe em Salvador e São Paulo. Os morros são habitados por afrodescendentes. Os bairros chiques e nobres da Zona Sul são habitados por brancos. Isso acontece também nos Jardins, em São Paulo, nos bairros da periferia, nos morros de Salvador e assim por diante. Mas também como os recursos do estado são destinados, né.

Quem é que vai ter acesso às oportunidades, à escola, à saúde, à educação. E a história fundamenta isso, a história é que justifica a organização de uma sociedade, a identidade de um país, de uma nação. Então a maneira como você narra, ou deixa de narrar, esconde a história, resulta em como a sociedade vai distribuir os benefícios entre seus diversos grupos. Eu acho que hoje nós temos no Brasil um sistema de fato de castas muito bem definido, embora a gente finja que nós somos um país igualitário, democrático, e de oportunidades iguais. As estatísticas e a realidade visível na paisagem urbana geográfica do Brasil mostra que não.

BBC News Brasil – Como os símbolos nacionais ajudam a consolidar esse sistema? A bandeira, os desfiles, por exemplo.

Laurentino – Isso é interessante. Na abertura do meu livro sobre a Escravidão, eu cito como epígrafe uma frase do padre Antônio Vieira, do finalzinho do século 17, que ele dizia o seguinte: “O Brasil tem o seu corpo na América, e a sua alma na África”. O que ele está dizendo? O Brasil tem a sua geografia na América, a sua presença física, mas a essência, o povo, o elemento mais importante de constituição da sociedade brasileira era de matriz africana. Aí, quando você olha, por exemplo, a bandeira nacional, o que aparece lá? Aparecem os aspectos do corpo físico. As florestas, o ouro, o céu azul, o Cruzeiro do Sul. Você não tem povo brasileiro na bandeira do Brasil. Então eu diria que é interessante você observar isso, que a gente sempre valorizou muito as riquezas nacionais, né. Como se isso fosse a grande virtude, o gigante adormecido “em berço esplêndido”, como o Hino Nacional diz. Que berço esplêndido é esse?

Com grandes potenciais, recursos naturais, solo e sol e um clima adequado que para o agronegócio prosperar, as jazidas, mas a gente não cuida da nossa alma. A nossa alma africana nunca foi observada, estudada, valorizada da forma como deveria. E sem querer fazer um jogo rasteiro de palavras, com isso nós viramos um país desalmado, né. Um país que pensa nos seus símbolos nacionais e patrióticos e tenta esconder o legado da escravidão, isso é um retrato de um país que descuida da alma. Cuidamos muito da geografia. Temos uma visão mercantilista dos símbolos nacionais, valorizamos o aspecto físico dos recursos naturais, mas isso não reflete e nem valoriza a sociedade brasileira.

Fica mais contraditório por estarmos na era da informação, da tecnologia, da possibilidade de as pessoas realizarem seus talentos, potenciais, vocações. Um país é constituído principalmente pelos seus habitantes. E não pelos seus recursos naturais. E é preciso notar, é interessante que nossos símbolos nacionais, nosso hino, nossa bandeira valoriza o corpo e não a alma do Brasil.

BBC News Brasil – Por que o interesse em valorizar os símbolos?

Laurentino –Para defender a forma como a sociedade se estruturou, de cima para baixo, e que permita a um pequeno grupo explorar o trabalho e o potencial de, no limite, como mostra o período da escravidão, explorar o outro ser humano. É o que eu chamo de, no livro 1889, de uma miragem, no século 19. Os símbolos nacionais, a narrativa, os mitos nacionais foram implantados no século 19, incluindo o hino nacional e a bandeira.

Então você tem o Império brasileiro constituído por uma pequena elite bem educada, em Coimbra, no centro de formação europeus, e aí tinha todo um ritual de corte europeia, tinha uma arquitetura imperial em Petrópolis, no Rio de Janeiro, tinha barão, visconde, conde, duque, príncipe, imperador. E, nas ruas, pobreza, analfabetismo e escravidão. Essa era a realidade brasileira até o final do século 19. E eu diria que é até agora. Quando eu nasci, em 1956, metade dos brasileiros era de analfabetos, o índice de analfabetismo era de 50%. Então você vê que tem um descompasso entre o Brasil sonhado, o Brasil vendido nos seus símbolos e nos seus mitos, e o Brasil real.

Isso tem consequência na forma como a sociedade distribui os seus privilégios, os seus recursos. E, pelo que notamos, quem está no governo representa grupos que se interessam por manter as coisas como estão. É muito interessante, por exemplo, que nesta época exista uma narrativa que tenta perpetuar esses mitos. Então, por exemplo, um candidato no ano passado, que por acaso virou presidente da República, dizia que os portugueses nunca tinham entrado na África, e que a culpa pela escravidão era dos próprios africanos. Culpava os escravos pela sua própria escravidão. Por que isso? É um projeto político que se opõe a políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão.

Um projeto que questiona as cotas para afrodescendentes em escolas, impostos da administração pública, que não quer dar qualquer tipo de apoio mínimo às comunidades quilombolas no Brasil. Visitei muitas delas, são lugares muito pobres, de uma população carente. Então, quando você quer se opor a políticas públicas de compensação, você tenta reescrever a história. E diz que os quilombolas são todos gordos, pesam sete arrobas, preguiçosos, que vivem dos recursos do Estado. Não é um discurso bobo apenas para alimentar brigas nas redes sociais. Existe um projeto político muito bem-definido e de implantação acelerada, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam discutidas e implantadas. O uso de símbolos patrióticos é só uma faceta pequena disso.

BBC News Brasil – Qual a relação do brasileiro com os seus símbolos?

Laurentino – É muito contraditória. Por exemplo, em véspera de Copa do Mundo todo mundo põe a bandeira nas costas, ou no carro e canta o hino nacional, e isso é muito brasileiro e é muito ufanista. E aí quando a seleção perde, vira uma sensação de grande desânimo, um vácuo. No fundo, isso não é coisa só do futebol. No fundo, como é que eu me identifico com o Brasil? Que país é esse? O que esses símbolos representam? Porque o Brasil é criado por uma série de mitos, né. De que uma hora acordaríamos e surpreenderíamos o mundo. Mas por que demora tanto? Por que o Brasil perde oportunidades uma atrás da outra? Ou o mito de sermos um povo pacífico, ordeiro, honesto, trabalhador. Mas por que 19 das 50 cidades mais violentas do mundo estão no Brasil? Por que tanta corrupção? Por que existe uma guerra civil de fato em andamento nas periferias das cidades brasileiras? E também aí chegamos na escravidão, na tal democracia racial. Como esses símbolos, o hino, a bandeira, elas representam a identidade nacional, acho que o brasileiro, quando finalmente vê sua realidade no espelho, vê que o país é muito menos poderoso, igualitário e heróico do que os símbolos projetam, ele reluta a se identificar com o país que está descrito nos símbolos.

BBC News Brasil – E qual a consequência desse descompasso?

Laurentino – A consequência nós estamos vendo agora. E eu vejo isso de forma positiva. O Brasil hoje vive um período muito novo, inédito na sua história, que são mais de 30 anos de democracia sem ruptura. Claro que é uma democracia com muitos sobressaltos, muitos sustos no meio do caminho, mas pela primeira vez estamos aprendendo a exercitar a democracia. E neste ambiente nós estamos confrontando os nossos mitos. Então eu diria que nunca se discutiu tanto o Brasil quanto agora. Pode ser até de uma forma ainda bastante inadequada, com muita polarização, muita intolerância, muita agressão nas redes sociais, e até nas declarações das autoridades, mas o fato é que a gente está discutindo o Brasil. Se você entrar lá, tudo isso que a gente falou aqui está sendo discutido. Por que o Brasil não dá certo, nada funciona, a questão da escravidão, a herança africana, a violência, a corrupção. Então acho que isso é um bom sinal. No passado, sequer a possibilidade de gritar e brigar existia.

Vivíamos sob uma monarquia, em meio a um mar de analfabetos e pobres, e só uma pequena elite falava e discutia, produzia ensaios, discursos no parlamento a respeito do Brasil. Depois, várias ditaduras militares, regimes autoritários que impunham a censura e impediam que as pessoas falassem, se manifestassem ou participassem de reuniões política.

Embora o ambiente hoje seja de muita raiva, briga, agressão, intolerância, o fato de a gente poder gritar é uma coisa boa. No futuro, esses mitos todos que foram construídos de forma silenciosa e impostos de cima pra baixo vão ser redesenhados, e a gente vai chegar e ter uma visão mais concreta do país que realmente temos. E eu acho que pode até melhorar em função dessa discussão. Nada vai se resolver muito rapidamente, porque os passivos históricos são imensos e muito antigos, mas acho que hoje existe uma construção nova, uma visão nova, ao ponto de um livro sobre escravidão virar um best-seller, em duas semanas, o que para mim é uma tremenda surpresa.

BBC News Brasil – O que o fato de omitirmos o que o senho chama de alma pode causar? O caso dos seguranças de supermercado que espancaram um adolescente infrator esta semana, por exemplo, pode ser um reflexo disso?

Laurentino – Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão que a gente julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. E aí uma prática que era muito comum no regime escravista, eu cheguei a fazer uns posts em rede social, dizendo que no começo do século 19 havia manuais sobre como surrar adequadamente um negro no Brasil. Tinha um padre jesuíta, o Jorge Benci, que chegava a ter instruções, dizendo que os senhores deveriam, sim, surrar os seus escravos, mas que o número de chibatadas não ultrapassasse 40 por dia. Para não comprometer a capacidade de trabalho dos cativos.

E aí, de repente, no começo do século 21, quando a gente julga que a escravidão é coisa acabada, congelada no passado, você tem uma manifestação visível, gravada em vídeo, de uma prática característica do Brasil escravista colonial. Eu acho que isso serviu como um despertar de consciência. Isso é um país desalmado. Porque um país que pega um garoto que rouba uma barra de chocolate e surra ele, é um absurdo, sem nem chamar a polícia, sem passar pelas instituições, é um país sem alma. Desalmado.

BBC News Brasil – Mais governantes tentaram fazer uso dos símbolos nacionais?

Laurentino – Como a história é uma ferramenta de construção de identidade, é olhando para o passado que a gente constrói um presente e projeta uma identidade para o futuro, né, que país nós gostaríamos de ser daqui pra frente? Então a história ajuda a organizar essa construção de identidade aí. É natural que a história, e também os seus símbolos sejam manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos, pelos diferentes grupos ideológicos. Então, você observa, por exemplo, que o filme mais famoso produzido durante a ditadura militar foi o Independência ou Morte, com o Tarcísio Meira e a Glória Menezes, no sesquicentenário da Independência, em 1972, em que o imperador D. Pedro I aparecia quase como se fosse um general do regime de 1964, um herói marcial, imponente, aí na redemocratização, o mesmo D. Pedro I já aparece como um boêmio, mulherengo, na séria Quintos dos Infernos, com Marcos Pasquim. E depois, se você observar a frase preferida do presidente Lula, no governo do PT, era “nunca antes na história deste país”. Que é uma maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e desafios do presente. E o governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história da escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, porque quem se escravizava eram os próprios negros.

BBC News Brasil – Todos os governantes tentam fazer uso dessas datas?

Laurentino – O caso típico é o da proclamação da República. Logo depois da proclamação, o novo regime começou a rebatizar ruas, praças, monumentos, mudou a bandeira, mudou o hino nacional, criou mitos novos. Por exemplo, Tiradentes. Joaquim José da Silva Xavier era uma vítima da Monarquia e passou 100 anos incógnito na história do Brasil. E aí na República, ele é reconstruído, ele emerge das cinzas como herói republicano, defensor das ideias do novo regime. Então, na construção do Tiradentes é um caso típico: na época, depois de 1889, houve uma desconstrução da história e dos símbolos nacionais, monárquicos, para a construção de um novo imaginário republicano. Isso vem acontecendo, Getúlio fez isso, o regime militar fez isso, o governo do PT também, e isso está novamente sendo feito agora.

Fonte : BBC BRASIL

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