1º de outubro marcam as comemorações da revolução comunista que deu origem à República Popular da China, mas jovens de Hong Kong planejam protesto

A rebelião nas ruas de Hong Kong ofusca e foge ao controle do ambiente político que Beijing havia preparado para este 1º de outubro, quando será comemorado os 70 anos da revolução comunista que deu origem à República Popular da China. Carregado de simbolismos, o Partido Comunista chinês e seu líder Xi Jinping querem mostrar ao mundo a façanha da construção da segunda maior potência econômica global, “a poderosa nação” nas palavras de Xi.

No entanto, a promessa do “sonho chinês” de uma nação economicamente forte e próspera não convence a maioria dos hongkonguenses, em especial os jovens, que são maioria nos protestos.

Hong Kong vive um caos em inúmeras marchas convocada contra o “imperialismo chinês”. Bombas de gás lacrimogêneo, jatos de água e gás pimenta são disparados para dispersar protestos em três diferentes pontos da cidade. Manifestantes reagem com coquetel molotov e pedras contra os policiais. Duas grandes avenidas no centro foram bloqueadas com barricadas. Uma estação do metrô foi alvo de vandalismo e foi fechada. Já na periferia da cidade, nos chamados “novos territórios”, houve também manifestação pró-Beijing.

Charlie W, ativista que participará dos protestos contra Beijing, diz querer “fazer da celebração um dia escuro para mostrar nossa raiva ao partido comunista”.

Apesar de serem parte da China, é cada vez maior o número de pessoas que se define como honkonguenses, não como chinês. “Não somos mainlanders (continentais)”, diz Charlie W. acompanhado por um grupo de estudantes pouco antes de ir à uma nova manifestação. “Mainlanders” —com são chamados os moradores da china-continental— é considerado um termo pejorativo para atacar a população que vive sob as regras de Beijing. “Nossos valores são democracia e liberdade, somos diferentes”, diz o estudante.

Desde 2012, quando Xi Jinping assumiu o poder, a população vê que o cerco aos direitos civis e políticos que gozam com exclusividade está se fechando e que o modelo de “um país, dois sistemas” está sob ameaça.

A crise atual teve início quando entrou na pauta do Conselho Legislativo uma lei que autorizaria extradições de cidadãos locais para serem julgados em território chinês. A medida foi vista por críticos como um instrumento de perseguição política.

Após semanas de protestos —que passaram de ser pacíficos à violentos— a chefe do Executivo Carrie Lam recuou, retirando o projeto. Mas não foi suficiente. Agora os manifestantes exigem o cumprimento de cinco demandas para saírem das ruas, que são: eliminação total da lei de extradição, investigação sobre uso abusivo da força pela polícia durante os protestos, anistia aos manifestantes presos e sufrágio universal. “Se pudéssemos eleger o chefe do Executivo a lei de extradição nunca seria levada à discussão, não precisaríamos sequer protestar”, afirma Charlie W.

Hong Kong tem a Xi Jinping como presidente, mas também tem governo próprio, que é eleito por votação secreta por um comitê de 1.200 pessoas escolhidas pelo governo central chinês.

Essa é a primeira vez que esse estudante participa em manifestações e, apesar da inexperiência, decidiu integrar o grupo de choque. “O movimento anterior acreditava em manifestações pacíficas e não deu em nada. Agora o caminho é outro”, afirma em referência ao chamado Movimento dos Guarda-Chuvas, que em 2014 tomou as ruas pacificamente para exigir eleições diretas.

Filho único de um comerciante e de uma dona de casa que apoiam o governo central chinês, Charlie W. se vê isolado da família.”Minha mãe diz que estou sendo pago pela CIA”, conta entre risos. O jovem que diz ter como “referência” a democracia estadunidense, admite, no entanto, que os americanos podem se beneficiar da tensão entre a população local e Beijing. “Esse é efeito colateral de nossa luta, não a razão principal”, afirma.

Políticos dos EUA, entre eles o vice-presidente Mike Pence, o secretário de Estado Mike Pompeo e a líder da Câmara de Representantes dos EUA Nancy Pelosi têm recebido líderes da oposição e apoiado os protestos publicamente.

Beijing reagiu à ofensiva acusando os EUA de “reforçar forças violentas radicais em Hong Kong que defendem sua independência”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Geng Shuang.

Para o governo chinês, os EUA tentam reproduzir em seu território a chamada “revolução colorida” e está utilizando a crise em Hong Kong como “moeda de barganha” em meio à guerra comercial travada entre os dois países.

Uma das lideranças do chamado movimento pró-democrático, Joshua Wong, foi à Washington tentar empurrar a aprovação de uma lei no Congresso americano para restringir o comércio com Hong Kong. Se passar, os EUA poderão condicionar os privilégios comerciais que mantém com o território autônomo chinês à situação de direitos humanos e democracia.

Nova Guerra Fria

“Estamos vendo um grande choque de civilizações e a guerra comercial é apenas um aspecto desse enfrentamento”, afirma Willy Lam, professor da Universidade Chinesa de Hong Kong. A seu ver, a disputa comercial entre Beijing e Washington é uma reedição na guerra fria com a China ocupando o lugar da então União Soviética. “Não há dúvidas que os EUA estão jogando a carta de Hong Kong contra a China nessa guerra”, afirma Lam.

Desde que começaram os protestos, Saniee conta ter perdido a paz. Mãe de dois adolescentes, a mulher de meia idade caminhava em direção a manifestação à procura dos filhos. Saniee se opõe aos protestos e responsabiliza os professores pela “lavagem cerebral” que alimenta o sentimento anti-chinês nas salas de aula. “Eles estão convencidos que a China é o pior país do mundo, mas não é assim, temos um país forte e próspero, mas eles não enxergam isso”, comenta aflita.

Cenas da bandeira da China sendo pisoteadas e queimadas têm sido cada vez mais frequentes nos protestos, ao mesmo tempo em que os símbolos americanos ganham popularidade. Há uma semana, em uma concentração na Universidade de Hong Kong, estudantes cantavam o hino, carregavam bandeiras dos EUA e exibiam cartazes pedindo ajuda à Donald Trump.

Kenneth Chan, professor da Universidade Batista de Hong Kong e ex-legislador anti-Beijing, afirma que o movimento civil compartilha os “valores” defendidos pelo ocidente em relação à democracia e direitos humanos, mas que “não é ingênuo para acreditar que os americanos estão lutando por nossa liberdade”.

“O que as pessoas se perguntam é qual é o mal menor?” Se tornar moeda de troca, para que ainda tenhamos alguma influência global ou simplesmente sucumbirmos à um regime ditatorial?”.

Porque Hong Kong importa tanto?

“Beijing depende de Hong Kong para arrecadar dinheiro para seu ambicioso programa de modernização”, afirma Willy Lam.

Hong Kong é a porta de conexão da China com o Ocidente. Quando os britânicos devolveram o território à China, em 1997, a participação do território no PIB chinês era de 18%, agora é de apenas 2,3%. No entanto, a região é crucial como centro financeiro de recepção de capital estrangeiro que é atraído pelas regras de livre mercado e pelo sistema legal britânico.

Para Lam, essa é a razão pela qual Xi Kinping decidiu não usar a força do Exército Popular de Libertação para reprimir os protestos. “Uma ação militar amedronta os investidores e isso não interessa à Beijing”, afirma.

Entre 2017 e 2018, de acordo com cifras oficiais, a China recebeu aproximadamente US$ 125 bilhões de investimento estrangeiro direta, dos quais US$ 99 bilhões passaram por Hong Kong, quase 80% do fluxo.

Hong Kong é essencial ainda para as reservas chinesas de capital estrangeiro. Posicionada em sétimo lugar entre as maiores reservas do mundo —e com uma população de apenas 7 milhões— as reservas de Hong Kong somam hoje US$ 432 bilhões, superando países como o Brasil com reservas de US$ 388 bilhões e com uma população 30 vezes maior. A China, por sua vez, reúne as maiores reservas do mundo, calculadas em US$ 3,1 trilhões.

Hong Kong —que já sentia o impacto da desaceleração do motor chinês— agora vê sua economia afetada também pelas manifestações. Os protestos provocaram uma queda de 40% no turismo. O varejo também foi afetado e o fantasma da recessão se aproxima.

Nesta semana, a Chefe de Governo Carrie Lam iniciou um processo de diálogo com o movimento civil, mas um acordo parece estar longe de ser alcançado. “Hong Kong exige liberdades civis que não sejam desejadas por Beijing. Esta será uma batalha de longo prazo”, afirma Willy Lam.

Festa vermelha

Na cidade, as comemorações do 70 aniversário foram canceladas. E enquanto a bandeira vermelha queima desse lado, do outro é enaltecida por milhões de pessoas que viram seus cotidianos alterados, mas não pela rebelião em Hong Kong.

Há semanas a rotina dos moradores de Beijing mudou devido ao forte esquema de segurança e ensaios prévios à grande comemoração. Luzes, cartazes e bandeiras vermelhas vestem a capital chinesa para o extravagante desfile militar.

A histórica cerimônia será realizada na praça Tiananmen, considerada símbolo do país —e palco do massacre de manifestantes em 1989— onde se espera um desfile militar com exibição de “arsenal avançado” e uma parada civil que deve reunir mais de 160 mil pessoas.

Para o Partido Comunista chinês, é fundamental que a comemoração seja perfeita e grandiosa. Internamente, a comemoração deve enaltecer o poder do presidente Xi Jinping, considerado como o mais poderoso líder chinês desde Mao Tse Tung, o fundador da China comunista.

Para o resto do mundo, a comemoração pretende mostrar poder militar e a ideia de unidade da China moderna contra “hostilidades de forças estrangeiras”. Mas essa parte da coreografia, a da unidade, sairá descompassada. Em Hong Kong não haverá fogos artificiais. “Não troco a minha liberdade por nada, por esse bem estar que dizem que dão à população. Não quero ser mais um escravo do partido comunista”, afirma Charlie W.

Fonte: bbc Brasil

 

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