A subversão está instalada no Palácio do Planalto. O presidente promove a baderna, a corrupção das instituições e a guerra civil. O presidente põe o governo da república a serviço dos interesses particulares de seus filhos, contra os quais pesam escandalosas denúncias de crimes comuns. O presidente usa seu cargo para promover a ruína da federação, atacando prefeitos e governadores com os mais grosseiros insultos.
A república já não tem um governo. Temos, há um ano e meio, uma usina de crises, de agressões, de agitação sem propósito, de balbúrdia e de arruaças. O presidente rege com um coro de vândalos e se compraz em solapar, passo a passo, a ordem institucional democrática preparando o caminho para uma ditadura fascistoide. Ele constrói, tijolo a tijolo, a decadência econômica, a degradação do meio ambiente e o fosso social. Tudo isso se mostra absolutamente claro na infame reunião ministerial do dia 22.
Lendo a transcrição do áudio, lembrei-me do livro de Luiz Viana Filho sobre o Governo de Castelo Branco, que li duas vezes. O livro é muito bem escrito. O autor foi chefe da Casa Civil de Castelo e privava de seu convívio diário. Meticuloso, tomava nota de tudo. E ainda recheia seu livro com farta documentação epistolar. Narra as muitas reuniões ministeriais, os debates no Conselho de Segurança Nacional e as muitas audiências havidas com políticos em geral.
Deixo, aqui, de opinar sobre os motivos e as razões de Castelo para fazer o que fez e para deixar de fazer o que deveria ter feito. Deixo para outra oportunidade o apreciar as contradições e os equívocos daquele presidente. Ele não foi o anjo de candura que Luiz Viana descreve, nem o satanás fascista que pinta a historiografia de viés ultra-liberal e esquerdista. Foi apenas um homem de princípios democráticos que, em momentos decisivos, traiu em nome de uma insana cruzada anti-comunista.
Castelo foi, no entanto, a antítese perfeita de Bolsonaro. O general Castelo Branco, homem que combateu valorosamente na Itália, fluente em Inglês e Francês, leitor de Camus e Anatole France, foi de fato um homem distinto. Mesmo quando se referia aos seus mais ferrenhos adversários, fazia-o numa linguagem educada, elegante. Tinha horror à vulgaridade do vocabulário dos demagogos. Na sua retórica não havia lugar para termos chulos, piadas de mal gosto, baixos calões… Nunca levou para o plano pessoal as desavenças políticas. Era formal, sóbrio, reservado, cortês. Usou de us autoridade para conter abusos e por coro à licenciosidade da Linha Dura. Compôs um ministério com homens de elevada cultura e sólida formação, dos quais se podia discordar, mas que exerciam com muita capacidade as suas funções. Como comparar um Juraci Magalhães com o atual chefe do Itamaraty? Como comparar um Cordeiro de Farias com este Ricardo Salles? Como comparar Golbery com o caquético general Heleno? Como medir a elevada estatura intelectual de um Roberto Campos, ou de um Otávio Bulhões, com a mesquinha figura de um Paulo Guedes? E o que seria a beata Damares perto de uma Sandra Cavalcanti?
O fato é que no ministério de Castelo e de seus sucessores sentava-se o creme de la creme da elite conservadora. No de Bolsonaro, têm assento a escória da ralé reacionária, com honrosas exceções que apenas confirmam a regra. Os bons logo sairiam. Junte-se aos maus e serás um deles!
Estou a cavaleiro para dizer estas coisas porque nunca fui simpático à chamada “Revolução de l964”. Encaneci-me na luta contra ela. Gastei minha juventude na militância em prol da democracia e da justiça social. Paguei o preço. Mas o tempo e o estudo, a reflexão desapaixonada e a meditação filosófica, a independência de espírito e um senso de justiça humanista me permitem, hoje, julgar com isenção de ânimo, os fatos e os homens do passado. Sem ódio, sem rancores, mas sem ingenuidade.
O mal é vulgar
Assim é que, comparando o ontem e o hoje, o fato, que seria desonesto negar, é que os generais ditadores tinham uma distinção que Bolsonaro, o “mau militar”, segundo Geisel, nunca teve. Só Figueiredo destoou do conjunto, pecando por certa vulgaridade e alguma ocasional fanfarronice. Ainda assim, comparado a Bolsonaro parecia um lord britânico. Quando destaco a distinção daqueles homens em face da vulgaridade dos que hoje nos governam, não embargo minhas críticas, não os absolvo dos males que cometeram.
Convém ressaltar, no entanto, que Castelo foi o formulador da doutrina segundo a qual as forças armadas são instituições permanentes do Estado, devendo servi-lo lealmente, não se comprometendo com governos, que são episódicos. Castelo tinha horror ao que chamava de “carreiras paralelas” e, na reforma que fez das Forças, aboliu a permissão dada aos militares para exercerem cargos estranhos à carreira militar e continuar fardados. Militar que quisesse disputar eleições ou ocupar cargos civis deveria passar para a reserva e despir-se da farda. As forças armadas, na visão de Castelo, nunca seriam o braço armado deste ou daquele partido político. Também é dele o ensinamento doutrinário segundo o qual a alta oficialidade não deve se manifestar politicamente, nem a favor nem contra governos. Tendo se aperfeiçoado na França, Castelo assimilou o imperativo de serem as Forças Armadas “la grand muette”, a grande muda.
Certo, nem sempre a doutrina andou a par e passo com a práxis do militarismo no Brasil. Apesar dos princípios estabelecidos por Castelo, em mais de uma ocasião as forças se imiscuíram na politica, arrogando-se o papel de tutoras da Nação.
De uns tempos para cá, no entanto, parece que o espírito dominante nas forças é o que foi estabelecido por Castelo. Gente como Heleno, ou os velhos caquéticos do Clube Militar, não falam pelo Exército e nem exprimem o que a força terrestre pensa. Quando Bolsonaro, na sua fanfarronice, alardeia que tem as forças armadas ao seu lado para o que der e vier, penso que está apenas querendo intimidar o mundo civil. Não acredito que oficiais sério,s como o general Pujol, sejam capazes de se deixarem arrasar para uma aventura golpista sob o comando do capitão. Acredito que se os militares, se tiverem que intervir, coisa de que duvido, será para afastar este subversivo e entregar o governo ao General Hamilton Mourão. Como se diz lá em Portugal, nem sempre o come quem prepara o bom bocado.
Os bolsonaristas confundem as coisas. Os militares acatam Bolsonaro como seu comandante em virtude de expressa disposição constitucional. O presidente da República é o comandante supremo das Forças Armadas. Mas, rompida a institucionalidade, estabelecido o governo militar de exceção, nenhum general vai bater continência para um reles capitão sem curso de estado maior e que envergonhou a farda quando a usou. Num governo militar, a chefia recai sobre a patente mais alta, mais antiga, e com maior prestígio no interior das forças. Bolsonaro não é Castelo Branco.
Ele não conta com as Forças Armadas, daí querer armar a ralé, seu gado miliciano, que ele chama de “povo”, para tentar o golpe. Mas não vai conseguir. Cedo ou tarde ele cai, pela força da lei e da consciência democrática da nação, que nunca morre.