Desconfiados da eficácia do uso de máscaras para frear o avanço da doença, eles acusavam as autoridades de violar seus direitos constitucionais e pediam a volta à normalidade. Em um encontro realizado em 25 de janeiro daquele ano, chegaram a reunir mais de 2 mil pessoas.
Realizado há mais de cem anos, o protesto lembra as manifestações recentes em alguns estados americanos – e também em partes do Brasil e de outros países – contra as regras de distanciamento social, o fechamento do comércio e outras medidas impostas para conter a atual pandemia de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Nos Estados Unidos, o uso de máscaras em espaços públicos para reduzir o risco de contágio pelo coronavírus é recomendado por especialistas médicos, incentivado pelo governo federal e obrigatório em alguns Estados e cidades.
Mas as medidas vêm gerando resistência, protestos e até episódios de violência. Na semana passada, um segurança de uma loja em Flint, no estado de Michigan, foi morto a tiros depois de impedir que uma criança entrasse no local sem máscara. Em Stillwater (Oklahoma), ameaças levaram as autoridades a revogar a exigência do uso de máscaras em estabelecimentos comerciais.
Semelhanças e diferenças
Assim como os manifestantes de agora, os integrantes da Liga Anti-Máscara eram contra a exigência por diferentes motivos.
“Muitas pessoas (simplesmente) não gostavam de usar as máscaras”, diz à BBC News Brasil a historiadora Nancy Bristow, autora do livro American Pandemic: The Lost Worlds of the 1918 Influenza Epidemic (“Pandemia Americana: Os Mundos Perdidos da Epidemia de Gripe de 1918”, em tradução livre).
“Mas também havia pessoas que argumentavam que a exigência era uma violação de sua liberdade, intrusão excessiva do governo, coisas que estamos ouvindo novamente hoje”, salienta Bristow, que é professora de Universidade de Puget Sound, no Estado de Washington.
Mas apesar da semelhança no discurso, Bristow ressalta que há uma diferença fundamental entre o movimento de 1919 e os protestos atuais: “Eles não tinham os dados e as evidências que temos hoje de que fazer isso (cumprir as medidas de emergência) vai salvar vidas. A diferença é que agora não se pode alegar ignorância”.
Demora em reagir
A chamada gripe espanhola, que causou mais de 50 milhões de mortes ao redor do mundo, atingiu os Estados Unidos em três ondas, a partir da primavera de 1918 (outono no Brasil), quando focos foram identificados na Costa Leste, em soldados que haviam lutado na Primeira Guerra Mundial.
Não levou muito tempo para a doença se espalhar pelo país e chegar à Costa Oeste. Em São Francisco, então uma cidade de 500 mil habitantes, o primeiro caso foi confirmado em 24 de setembro de 1918, em um paciente que havia retornado de uma viagem a Chicago.
Mas as autoridades municipais, assim como ocorreu em outras cidades, demoraram a reagir. Inicialmente, determinaram apenas que doentes fossem colocados em quarentena e recomendaram que as pessoas praticassem boa higiene e evitassem multidões.
Somente em 18 de outubro, mais de três semanas depois do primeiro diagnóstico, foi decretado o fechamento de escolas e locais de lazer e proibida a aglomeração de pessoas. A essa altura, São Francisco já registrava mais de 3,7 mil doentes e 70 mortos.
O médico William Hassler, principal autoridade de saúde no governo municipal, considerava o uso de máscaras em público a maneira mais eficaz para impedir o avanço da doença e, em 25 de outubro, determinou sua obrigatoriedade. Quem desobedecesse estava sujeito a multa ou até mesmo prisão.
“São Francisco foi uma das primeiras grandes áreas metropolitanas a exigir que toda a população usasse máscaras”, diz à BBC News Brasil o especialista em história da medicina Brian Dolan, professor da Universidade da Califórnia em São Francisco.
Símbolo de patriotismo
Em meio aos esforços nos meses finais da Primeira Guerra Mundial, o uso de máscaras começou a ser considerado símbolo de patriotismo. A imprensa da época estimava que 80% da população de São Francisco estivesse cumprindo a ordem nas semanas iniciais.
Mas centenas foram detidos por desobedecer. Muitos outros usavam de maneira errada. Há relatos até de pessoas usando máscaras com um buraco na boca, para fumar.
As máscaras da época eram feitas de gaze. A Cruz Vermelha fabricava e distribuía em todo o país, mas não havia o suficiente. Com a escassez, as autoridades recomendavam que a população costurasse suas próprias máscaras, com qualquer material disponível. Muitas eram feitas de tecidos porosos, o que prejudicava sua eficácia.
“Também se tornou um tipo de item da moda, assim como está acontecendo agora”, observa Dolan.
Ao final de outubro, São Francisco tinha 20 mil pessoas infectada e mais de mil mortos. Mas o número de novos casos vinha diminuindo, e as autoridades decidiram que era hora de começar a levantar as restrições.
A partir de 16 de novembro, menos de um mês depois do início das medidas de emergência, restaurantes, hotéis, cinemas, teatros e arenas de esportes começaram a reabrir, com casa lotada.
O uso de máscaras ainda era obrigatório, mas muitas pessoas passaram a ignorar a determinação. O próprio Hassler e o prefeito, James Rolph, foram fotografados sem máscaras enquanto assistiam a um combate de boxe. Ambos pagaram multa.
Celebração prematura
Ao meio-dia de 21 de novembro, dez dias após o fim da Primeira Guerra Mundial, o som de sirenes ecoou pela cidade, anunciando o fim da obrigatoriedade. Em comemoração, multidões arrancaram suas máscaras e as jogaram no chão, cobrindo ruas e calçadas com o que um jornal da época descreveu como “vestígios de um mês tortuoso”.
Mas a celebração logo se revelou prematura, e o número de casos da doença voltou a crescer. Duas semanas depois, o prefeito pediu que a população voltasse a usar máscaras em público, desta vez de maneira voluntária.
“Eles levantaram as restrições e, então, sofreram uma nova onda da pandemia. E em vez de reiterar as regras de distanciamento social, o que teria sido a decisão lógica, apenas se concentraram no uso de máscaras e na quarentena dos doentes, pensando que poderiam controlar a doença com essas medidas”, diz Bristow.
Mas, sem obrigatoriedade ou risco de punição, a maioria da população ignorou a recomendação. Calcula-se que apenas 10% voltaram a aderir à medida. Com o número de doentes crescendo, em 17 de janeiro de 1919 as autoridades tornaram o uso de máscaras obrigatório novamente.
Resistência
Desta vez, porém, a exigência foi recebida com resistência. Comerciantes eram contra, temendo que a regra tivesse impacto negativo nas vendas. Muitos também questionavam a eficácia das máscaras para conter a pandemia.
Dolan lembra que, na época, a Associação Americana de Saúde Pública havia publicado um artigo em uma revista científica no qual dizia que as evidências sobre a eficácia das máscaras eram contraditórias.
“O desafio era que as pessoas diziam que, mesmo com as máscaras, não se estava evitando a propagação da doença”, observa o historiador.
Foi nesse contexto que surgiu a Liga Anti-Máscara, formada por empresários, comerciantes e até alguns médicos e um integrante do governo, para pressionar pelo fim da obrigatoriedade que, segundo eles, ia “contra a vontade da maioria da população”.
Na verdade, as mais de 2 mil pessoas presentes do encontro realizado pelo movimento representavam menos de 1% da população da cidade na época, mas muitos de seus membros eram influentes.
Alguns queriam assinaturas para um abaixo-assinado pelo fim da obrigatoriedade. Outros defendiam medidas mais drásticas, como a demissão de Hassler. O próprio encontro, com milhares de pessoas sem máscaras, pode ter ajudado a propagar a doença.
O prefeito inicialmente resistiu à pressão, afirmando que as posições do movimento não representavam o desejo da maioria dos moradores. Mas em 1º de fevereiro, uma semana após o encontro da liga, a exigência do uso de máscaras foi revogada.
Exemplo
Segundo historiadores, apesar de outras cidades americanas também terem registrado episódios de resistência à obrigação de usar máscaras, nenhuma teve um movimento tão organizado quanto o da Liga Anti-Máscara.
Bristow afirma que é difícil saber o impacto que o uso de máscaras teve no controle da doença em São Francisco. Mas ela e outros historiadores afirmam que a devastação provocada pela gripe espanhola na cidade mostra as consequências graves de levantar as restrições antes que a pandemia tenha sido controlada.
Apesar de inúmeras declarações das autoridades de que São Francisco havia vencido a gripe espanhola rapidamente, quando os números gerais do país foram compilados pelo governo federal, ficou claro que a doença teve efeito devastador.
A cidade registrou um total de 45 mil infectados e mais de 3 mil mortos, uma das mais altas taxas per capita nos Estados Unidos. No país inteiro, a gripe espanhola deixou 675 mil mortos.
Fonte BBC BRASIL