JORNALISTA HELVÉCIO CARDOSO

 

Bolsonaro tem vocação autocrática. É seu mais ardente desejo governar sozinho. A ralé que o idolatra acredita que o Congresso e o Supremo não o deixam trabalhar. Pensa que a vigente constituição deveria ser substituída por um “novo AI-5”,  o estatuto infame da opressão, o mapa daquilo que o Dr. Ulysses chamou de “caminho maldito, que levou os patriotas às prisões, ao exílio e ao cemitério”. Bolsonaro gostaria mesmo é de ser rei. A ralé bolsonarista clama por este rei tal qual os hebreus clamavam por um nos tempos dos Juízes. Dai-nos um rei!

Cansados de levar cacete dos filisteus, os hebreus pediram ao venerável profeta Samuel que lhes desse um rei. Na verdade, um cabo de tropa, um chefe de guerra. Um marechal de campo. Jeová, o Senhor dos Exércitos, sentiu-se desprestigiado. O teocrata que reinava sobre uma nação de homens livres mandou Samuel deferir a solicitação do povo eleito, não sem antes proclamar os direitos do Rei.

O provecto Samuel de má vontade institui a monarquia hebráica. Ao proclamar os direitos do Rei, avisa que o povo ainda há de se arrepender. Resumindo o longo discurso de Samuel sobre os direitos do Rei: o povo, diante do Rei, é nada; o Rei, diante do povo, é tudo. O povo terá que pagar pesados tributos e ceder seus filhos para morrer nas guerras do Rei e ceder suas filhas para servir no palácio real.

O discurso de Samuel é mais bem acabada Teoria do Estado de quantas a vã filosofia ocidental já criou. O Estado, o rei, está em contradição com o povo. Há nesta relação um latente estado de revolta, um desejo extrapolante de sedição. A abolição do estado é um imperativo da liberdade, uma exigência do Marxismo, do Anarquismo, do Anarco-capitalismo e do Libertarismo; as duas últimas, doutrinas reacionárias de extrema-direita.

O Estado, porém, não precisa ser, necessariamente, o túmulo das liberdades. Uma coisa é o Estado em si. Outra são os estados historicamente determinados, em si e para si,  aqui e agora. O Estado pode ser, e tende a ser,  o altar das liberdades. É uma questão de organização refletindo a evolução cultural de um povo no contexto de suas lutas de classe. É uma questão de constituição.

O rei e o povo

O rei dos tempos heróicos dava leis ao povo, geria os negócios públicos, fazia a guerra e julgava os confitos intersubjetivos de interesse. O rei era infalível e irresponsável. Eram-lhe devidas obediência e adoração. Sua pessoa era sagrada. Era símbolo. Signo, significante e significado. Condição e incondicionado. O absoluto! Esse tipo de rei ainda subsiste hodiernamente nas arábias.

Ora, bem! Em certos momentos da História, alguns povos se cançaram de seus reis. Alguns foram mortos por seus súditos. O último rei de Roma, Tarquínio, o Soberbo, foi passado a faca por um certo Brutus. O filho de Tarquínio estuprou uma dama patrícia, que, não podendo suportar  dor da violação de sua honra, se matou. O rei quis proteger seu filho, impedir que pagasse pelo crime cometido. Isto não lhe parece familiar, caro leitor?

O fato é que Brutus foi aclamado herói. Não haveria mais reis. A coisa pública seria gerida por magistrados e tribunos eleitos pelo populus, para mandatos de dois anos, vedada a reeleição. Instituído o princípio republicano, Roma se expandiu e sua bela forma de governo durou por quase 800 anos.

Os romanos tinham horror à monarquia. Júlio César foi assassinado por um outro Brutus porque suspeitava-se de que pretendia se fazer rei. O espisódio levou à derrocada da República. Mas, mesmo com o advento do Imperium, a forma republicana subsistiu até os tempos de Diocleciano. O primeiro imperador, o sábio e prudente Otávio, o Augusto, não quis cetro nem coroa, apenas a púpura senatorial, preferindo apresentar-se como apenas um destacado membro do Senado, um primus inter pares. Somente na fase decadencial de Roma é que o princípio republicano esvanece até perecer de vez com a conquista de Odroaco, o primeiro rei da Itália barbarizada.

Pesos e contra-pesos

Refletindo sobre a experiência da polis grega, da república romana e dos reinos bárbaros, Montesquieu sintetizou suas conclusões liberais na famosa doutrina dos três poderes, “independentes e harmônicos entre si”, formando um sistema de freios e contrapesos. Um corpo de representantes faz as leis; outro corpo governa; e outro corpo julga os conflitos intersubjetivos de interesse, castigando os maus. À feliz união desses corpos políticos, sob a égide de uma lei geral que se quer imutável, constitue-se o Estado de Direito.

No esquema de Hegel, um pouco diferente do plano de Montesquieu, o Judiciário cai na esfera da sociedade civil-burguesa, e o Monarca é meramente chefe do Estado. De tal sorte que o poder Executivo se subdivide entre administração e chefia do Estado propriamente dito; esta, a cargo do monarca. Estado e governo são, assim, seres-aí autossubistentes um frente ao outro, não em oposição conflitante, mas em unidade integrante.

No Brasil, a distinção entre Governo e Estado é quase ausente da consciência nacional. Mesmo entre os juristas mais cultos, entre os cientistas políticos mais argutos, esta fundamental diferenciação escapa, ou, quando muito, é apreendida como mera sutileza jurídica. Na medida em que o presidente da República reúne em sua pessoa a chefia do Estado, do Governo e da Nação, a tentação autocrática fica quase irreprimível. Daí o aventureirismo, o impulso usurpador.

Daí os conflitos entre os poderes. Alguns presidentes acham que foram eleitos para reinar soberanamente. Muitos dos seus eleitores acreditam que elegeram um rei. Não um rei como os que temos na Europa e no Japão. Reis que são meramente chefes de Estado, exercendo eventualmente o poder moderador. O que se quer para Bosonaro é que seja um rei das arábias. Assim, nosso presidencialismo vira monarquia eletiva, temporária. Monarquia sem dinastia. Um traço típico do nosso sub-desenvolvimento, do atraso cultural do povo brasileiro. A morte do princípio liberal-democrático.

Bolsonaro e seus rebentos, com o apoio da ralé bolsonarista, vêm tentando a custo subverter a ordem demorática. Vem tentando imprimir um carater ditarorial ao seu governo. Mas, para seu azar, o Estado ainda é democrático e vem reagindo orgnicamente às tentativas de subversão insitucional.

Como bem disse o ministro Celso Mello, o presidente pode muito, mas não pode tudo. O protagonismo do Congresso, as decisões dos ministros do Supremo, a insubmssão dos governadres, a resiliência do Ministério Público, da Polícia Federal, da Imprensa, e até mesmo dos chefes militares fardados, vem funcionando como barreira às aspirações ditatoriais do presidente. Esta barreira vem impondo limites ao desvario anti-republicano dos bolsonazis. A resistência vai num crescendo que pode levar à precoce liquidação do atual governo federal.

Bolsonaro teve a sua oportunidade de ser o primus inter pares. Deixou que ela se perdesse nos desvãos de sua vaidade alucinada. Tendo perdido a lealdade de aliados de primeira hora, vendo sua milícia ser reduzida a uma seita de fanáticos ruidosos mas inefetivos, ele convoca os mercenários do Centrão para defendê-lo.

Pobre Bolsonaro! Lá fora, no centro da Praça dos Três Poderes, a guilhotina já vai sendo afiada!

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